Ontem, em Anápolis, um fio venceu a distância entre o descaso e a tragédia. Uma criança de 10 anos sentou-se onde não deveria haver perigos, numa calçada, num pedaço de rua que é também território de quem vive, e encontrou ali o último vestígio de uma atenção que nunca veio: um cabo descascado, exposto, jogado como lixo. Foi só um toque. Foi um choque. Foi uma família que deixou de ter risos e jantares e começou a ter luto.
Dias antes, um transformador explodira naquela mesma região. Os estilhaços não foram só de metal, foram de promessa quebrada. Os fios ficaram pelo chão, enrolando-se na paisagem urbana como se protestassem, e ninguém os recolheu. A prefeitura diz que um caminhão passou e estourou os cabos. A empresa responsável fala em imprevisto. Palavras técnicas, desculpas prontas, protocolo cumprido. Mas desculpa nenhuma devolve uma infância, e protocolo nenhum aquieta os que ficam.
Estamos por um fio. Literalmente. E também por um fio de esperança, por um fio de responsabilidade, por um fio de cuidado que a administração pública e as concessionárias parecem cortar sem dó. Cada poste torto, cada tampa de bueiro quebrada, cada fiação exposta é uma pequena decisão institucional transformada em perigo público. É assim que a negligência se naturaliza, quando se transforma em rotina, quando se aprende a conviver com o risco como se fosse parte do cenário urbano, e não uma falha que precisa resposta.
A cidade deveria ser uma rede que protege, não um emaranhado de ameaças. Em vez disso, vemos órgãos que medem custo e lucro antes de medir vidas. Vemos contratos que escondem omissões. Vemos relatórios que se multiplicam enquanto a manutenção não vem. E no fim, quem paga é uma família, uma vizinhança, uma criança que poderia estar brincando no quintal.
Não é apenas um problema técnico. É moral. É sobre quem decide que a vida pode ser trocada por eficiência aparente, por economia de escala, por negligência administrativa. Quando a resposta oficial é buscar culpados em circunstâncias, “um caminhão passou”, “foi um acidente”, temos de perguntar também quem permitiu que a rua ficasse assim, quem fiscaliza, quem cobra, quem atende o pedido de socorro antes que seja tarde demais.
Chorar não basta. Lembrar não basta. Precisa-se ação concreta: investigação independente, fiscalização rigorosa, responsabilização pública e privada, reparos imediatos. E, sobretudo, um padrão de cuidado que recuse a rotina do risco. Enquanto isso não acontecer, continuaremos por um fio, e amanhã o fio pode ser o selo que separa um bairro inteiro da tragédia.
Que a dor desta família não se torne apenas mais um dado numa estatística. Que sirva, ainda que tarde, para arrancar a cidade do comodismo e devolvê-la ao mínimo que se exige: segurança. Porque viver por um fio é viver à espera do próximo choque. E viver esperando não é viver.



