As grandes cidades aprenderam uma coreografia confortável, espetáculo midiático, foto com a autoridade, promessa de ação, e, voilà, nada muda. Em Anápolis esse número tem direção e rosto. O prefeito Márcio Corrêa gosta de aparecer nas ruas, conversar diante das câmeras com moradores em situação de rua e divulgar flagrantes de operações noturnas como se isso fosse um plano de governo. O que a cidade ganha com isso? Visibilidade para o gestor, e pouca ou nenhuma solução estrutural para quem dorme na calçada.
Enquanto isso, ao mesmo tempo em que se encena proximidade e firmeza, há gestos práticos que deixam claro onde fica a prioridade, obras e anúncios grandiloquentes, ou o fechamento de serviços essenciais quando convém ao espetáculo. Recentemente, a prefeitura anunciou a construção de centenas de casas em parceria com o governo federal, uma notícia que, se for cumprida, pode ser relevante, e, no mesmo compasso, houve decisões administrativas que encerraram o funcionamento de equipamentos de acolhimento usados pela população de rua, como o Centro Pop. Não é uma contradição, é gestão de prateleira, que privilegia o marketing e posterga o trabalho de base que demanda paciência, dinheiro e, sobretudo, vontade política consistente.
A retórica é fácil, “quem pratica crimes será removido e responsabilizado”. A prática, menos romântica, costuma ser outra, operações policiais rápidas que deslocam o problema, prisões e liberações em ciclo, e a manutenção das chamadas bocas de venda nas sombras. Não há novidade nisso, o que há é hipocrisia administrativa, prometer ordem pública com mão dura na foto e não apresentar um plano integrado de moradia, saúde mental, redução de danos e inserção laboral. Enquanto o prefeito vende firmeza, a rua segue sendo depósito de falhas políticas.
Para completar o cenário tragicômico, o próprio gestor viu seu nome ligado a investigações e a episódios que complicam o discurso de moralidade e liderança que costuma exibir em público. Não é flash de rede social, trata-se de investigações formais que, ao menos, pedem cuidado ao transformar retórica punitiva em política pública legítima. Governar com moralismo exige, ao menos, que a casa esteja em ordem, e não parece ser o caso.
O discurso do “resgate” e da “tolerância zero” tem um efeito perverso, empurra para as periferias as pessoas que deveriam ser o foco de um projeto de reinserção. Quem vive nas ruas não é problema de varrição urbana, é sintoma de políticas sociais falidas. Se Márcio Corrêa quiser realmente mudar o cenário, terá de trocar o roteiro, menos live, menos ronda para foto, menos fechamento de equipamentos sociais por conveniência política, mais compromisso com moradia efetiva, financiamento contínuo a programas de saúde mental e dependência, equipes de redução de danos e ofertas de trabalho que não sejam meros slogans eleitorais.
Se a cidade continuar a apostar no espetáculo, o resultado será previsível, aplausos curtos, manchetes efêmeras, e a mesma calçada testemunhando vidas que se perdem. O teatro político dá bom enquadramento para a câmera, cura zero. Anápolis precisa parar de fazer política como se fosse dramaturgia, e começar a cuidar como se fosse responsabilidade pública. Quer dizer, se houver coragem para isso, e coragem é coisa que fotos e discursos não revelam.



