No km 20 da MT-100, em Pontal do Araguaia, a ameaça de um aterro sanitário que receberá lixo de nove cidades, cem toneladas por dia, transforma cafezinhos em silêncio e apreensão em ação judicial.
O sol ainda não espantara a névoa quando os moradores do quilômetro 20 da MT-100 se reúnem à beira da estrada. Não há cartazes nem bandeiras, apenas cadeiras improvisadas, canecas gastas e olhares que já não escondem mais o medo, a tristeza e o abalo emocional. No peito, a mesma pergunta repete-se em diferentes vozes: cem toneladas de lixo por dia jogadas aqui, é isso mesmo? O que será de nossas águas e de nossa fauna?
O projeto de construção de um aterro sanitário na região tem tirado o sono de dezenas de pequenos produtores rurais. “A gente trabalhou a vida inteira para comprar esse pedacinho de terra”, diz seu Divino, o Baixinho, com a voz quebrada de cansaço. Ao lado, sua esposa, dona Romilda, segura a xícara de café e olha para o pasto como quem se despede de um amigo. “Será que alguém vai ter coragem de comprar o meu queijo, se a gente for morar no meio dessa lixaiada aqui?”, pergunta, e a frase fica no ar como um veredito.
São histórias simples e duras, mais de trinta famílias que vivem da produção de leite, queijo e outros cultivos, que gostam de ouvir o canto das seriemas e ver os pássaros ao amanhecer. São essas imagens, o galope das aves, o cafezinho entre vizinhos, que correm o risco de se transformar em moscas, urubus e um silêncio forçado. “A única economia da vida dele está sendo ameaçada por isso”, diz o senhor Adalcino Carvalho, um dos proprietários que faz divisa com o terreno do projeto. Segundo o produtor, desde que a notícia surgiu, os preços das terras já caíram pelo menos 50%. “Quem vai pagar por isso?”, pergunta Adalcino em nome de vários vizinhos.
Carvalho relata que tem orgulho de dizer que mora perto de duas das praias mais lindas da região e que, agora, terá que falar que mora perto do lixão. Outro morador, que não quis se identificar, um senhor de 85 anos, afirmou que foi a notícia mais triste e dura de sua vida: juntou toda a economia de uma vida inteira para comprar seu sonhado pedacinho de terra e viver o restinho da vida junto à natureza; agora terá que conviver com moscas, urubus, mau cheiro e lixo. Com sua experiência de vida, deixa uma reflexão: se lixo fosse tão bom, as outras cidades também o quereriam para si. Outra moradora disse que Pontal do Araguaia é conhecida pelas belas praias, pela festa do pequi e pela maior fogueira de São João, e que agora poderá ser conhecida como a cidade do lixo.
A resposta, por enquanto, é judicial. Em reunião com todas as famílias afetadas, os produtores decidiram partir para a ofensiva, entrar com ação popular, mover ação na Justiça Federal e protocolar denúncia no Ministério Público Federal. Um abaixo-assinado já foi encaminhado ao Ministério Público Estadual de Mato Grosso e à Agência Nacional de Águas, além de ser colocado nas mãos de Deus.
Há, nessa mobilização, a mistura de desespero e esperança que move quem vive da terra. Não se trata apenas de números, trata-se de memórias, de conquistas arrancadas com suor, de um cotidiano que sustenta famílias e uma cultura local. “Se a Justiça entender que eles não têm direito, nós vamos cobrar em juízo a desvalorização das terras”, afirma um dos organizadores do movimento.
O cenário comentado pelos moradores tem um custo humano que os números não conseguem abarcar. A imagem dos vizinhos, copos de café à mão, já não é apenas um retrato de convivência, é um símbolo do que está em jogo. “Esse cafezinho entre nós não vai existir mais”, dizem, e a frase sintetiza a dor de um modo de vida que pode desaparecer.
Há ainda questões ambientais apontadas pela comunidade que, segundo eles, não foram devidamente consideradas até a presente data: o poder público não realizou audiência pública, e há várias nascentes e córregos próximos à área, todos afluentes do rio Araguaia, que fica nas cercanias. A solicitação de vistoria técnica e a inclusão do caso nas esferas estadual e federal indicam que a disputa pode transcender o diálogo local e ganhar contornos de litígio prolongado. Enquanto isso, a incerteza corrói planos e, para muitos, a esperança.
O Vale do Araguaia, ou como muitos continuam a chamar, o vale que alimenta e abriga famílias, amor e felicidades, arrisca ver suas manhãs tomadas por moscas, aves de rapina e montes de lixo, suas águas contaminadas e seus caminhos marcados pelo receio e pela perda.



